Evolução Dos Quóruns Em Sociedades Limitadas: O Anteprojeto De Reforma Do Código Civil

A revisão dos quóruns de alteração contratual e deliberação — e, conexamente, do quórum de instalação — das reuniões e assembleias de sócios de sociedades limitadas tem suscitado algumas alterações que merecem ponderação...
Brazil Corporate/Commercial Law
To print this article, all you need is to be registered or login on Mondaq.com.

A revisão dos quóruns de alteração contratual e deliberação — e, conexamente, do quórum de instalação — das reuniões e assembleias de sócios de sociedades limitadas tem suscitado algumas alterações que merecem ponderação, especialmente diante da revisão relativamente recente da matéria e da expectativa de nova regulamentação no bojo da aguardada reforma do Código Civil.

Uma das mais impactantes alterações legislativas em matéria de direito de empresa no âmbito do Código Civil ocorreu por meio da Lei 14.451, de 21 de setembro de 2022, que o modificou para estabelecer a maioria do capital social como quórum necessário para se alterar o contrato social, substituindo o padrão anterior de ¾ (três quartos) do capital social. Essa regra foi igualmente adotada para a aprovação de incorporação, fusão e dissolução da sociedade, ou a cessação do seu estado de liquidação.

A mudança, que refletiu os reclamos majoritários de juristas e advogados desde a promulgação do Código Civil, foi salutar por, além de reduzir — mas não eliminar — a injustificável profusão de quóruns legais para as mais diversas matérias, fez prevalecer a observância do princípio majoritário, respeitando a adequada alocação de direitos políticos em favor dos investidores que assumiram maiores riscos ao aportarem mais recursos na sociedade. Como explicado por Fábio Ulhoa Coelho:

"As deliberações entre os sócios relativamente aos assuntos da sociedade são adotadas, regra geral, por maioria. No processo de tomada de decisões, na sociedade limitada, cada sócio interfere de modo proporcional à contribuição que deu para o negócio. A regra da proporcionalidade entre aporte de recursos e exercício de direitos na gestão social está prevista no art. 486 do CCom. Trata-se de dispositivo referente às parcerias em empreendimentos comerciais marítimos, que determina a prevalência do parecer da maioria no valor dos interesses. Para não restarem dúvidas, o dispositivo reforça que, ao dimensionar a maioria nas parcerias marítimas, não interessa o número de sócios, mas o montante do aporte de cada um. Essa regra sempre foi aplicável às sociedades empresárias."1

A alteração, longe de consistir em ajuste pontual ou com efeitos preponderantemente doutrinários, é paradigmática e tem implicações práticas substanciais, viabilizando a flexibilidade que preconizou o surgimento da sociedade limitada e promovendo-a como um instrumento mais adequado a parcerias negociais ao, neste aspecto, aproximá-la da sociedade anônima.

Nesse contexto, salvo poucas exceções — como o já referido quórum de 2/3 (dois terços) para designar administradores não sócios enquanto o capital social não estiver integralizado, e a unanimidade para transformar o tipo societário, caso não seja previsto quórum menor no contrato social —, o Código Civil passou a estabelecer, por meio da nova redação do artigo 1.076, a maioria como padrão das deliberações.

Referida maioria pode ser qualificada, ao exigir votos correspondentes à maioria do capital social (para — além das hipóteses já referidas de modificação do contrato social, e incorporação, fusão, dissolução da sociedade, ou cessação do estado de liquidação — a designação dos administradores, quando feita em ato separado; a destituição dos administradores; o modo de sua remuneração, quando não estabelecido no contrato; o pedido de recuperação judicial) ou absoluta, ao demandar a maioria dos votos dos presentes (para a aprovação das contas da administração; a nomeação e destituição dos liquidantes e o julgamento das suas contas; e os demais casos previstos na lei ou no contrato, se este não exigir maioria mais elevada). Reflexamente, a Lei 6.404/74 já estabelecia nas sociedades anônimas o padrão da maioria dos votos dos presentes para aprovar as deliberações em assembleia geral, nos termos do artigo 129, ressalvando as hipóteses específicas de votos correspondentes à maioria do capital social votante para as matérias relevantes previstas no artigo 136.

Novo quórum às sociedades limitadas

Destaca-se que a alteração legislativa deu azo a certa discussão sobre as condições de aplicação do novo quórum às sociedades limitadas já existentes quando do advento da lei, havendo sobressaído o entendimento no sentido de, primando pela segurança jurídica do ato jurídico perfeito, respeitar-se o estabelecido no contrato social. Assim, com previsão expressa dos números e/ou percentuais dos quóruns no ato constitutivo, estes continuariam a se aplicar, ao passo que, havendo remissão genérica aos quóruns legais, sem indicação de números e/ou percentuais específicos, passariam a aplicar-se os novos quóruns ajustados.

Em que pese o tempo relativamente recente de publicação deste estudo em face do advento da Lei 11.451/22, o Tribunal de Justiça de São Paulo teve a oportunidade de caminhar nesse sentido:

"(...) Conquanto não se ignore a revogação do inciso I do art. 1.076, ante a nova redação dada pela Lei nº 14.451 de 2022, que reduziu o 'quórum' para deliberações societárias, não se pode desprezar que o contrato previu expressamente o 'quórum' mínimo de 75%, embora tenha feito remissão ao artigo revogado.

Mas não foi feita apenas remissão ao texto legal, e sim, foi estabelecido expressamente o 'quórum' de 75% para as modificações do contrato social. Assim, pouco importa o novo texto legal, pois o 'quórum' foi estabelecido em regra contratual que, por sua vez, decorreu da vontade dos sócios, que deve ser obedecida.

Trata-se de ato jurídico perfeito, pois foi consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou o ato (art. 6º, §1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

Nesse contexto, tendo em vista que há expressa menção ao percentual no Contrato Social, correta a r. decisão que determinou que as deliberações relativas às alterações do Contrato Social observem o 'quórum' de 75%."2

Saliente-se que o ajuste do quórum de deliberação não trouxe consigo o correspondente ajuste do quórum de instalação de assembleias de sócios, mantendo o artigo 1.074 do Código Civil a exigência do quórum original de ¾ (três quartos) do capital social para viabilizar o início do conclave. Sem prejuízo, é possível aos sócios contornar essa discrepância dado que se aplica às reuniões de sócios o quórum de instalação previsto no contrato social, aplicando-se forçosamente o acima previsto somente às assembleias de sócios — vale dizer, nas sociedades que possuam mais de 10 sócios — ou às sociedades limitadas que, apesar de terem reuniões de sócios, possuem contrato social omisso neste tocante.

Apesar de a alteração ser relativamente recente como acima se viu, o tema pode vir a ser novamente ajustado, já que se encontra em discussão no Senado um anteprojeto de reforma do Código Civil, que visa a ajustar e atualizar diversas disposições de todo o diploma, incluindo o livro do direito de empresa.

No que toca ao objeto desta análise, destaca-se a orientação do relatório final dos trabalhos da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil em não somente manter a diretriz de privilegiar o "princípio majoritário nas deliberações sociais", como destacado em sua justificação, mas também de simplificar o regramento recentemente modificado.

Isso devido à nova redação sugerida ao artigo 1.076, que passaria a prever que "todas as deliberações, salvo disposição contratual diversa, serão tomadas por votos correspondentes a mais da metade do capital social, impliquem ou não em alteração do contrato". Deste modo, não haveria mais a concomitância dos dois tipos de maioria acima descritos, desconsiderando-se o quórum dos presentes ao conclave — e ainda aqueles outros remanescentes acima indicados — para aplicar-se agora tão-somente a maioria do capital social.

Verifique-se, por oportuno, que nesta situação o quórum de instalação seria atualizado concordemente, corrigindo-se a divergência acima apontada para que a reunião de sócios passe, de acordo com a nova redação do artigo 1.074, a instalar-se com a "presença, em primeira convocação, de titulares que representem, no mínimo, mais da metade do capital social e, em segunda convocação, com qualquer número". Todavia, a princípio, somente o quórum da primeira convocação parece fazer sentido, já que o quórum da segunda convocação, caso não superior à metade do capital social, não seria apto, aparentemente, a aprovar qualquer matéria.

Nesta altura, é possível, para fins de clareza, sintetizar as fases de segmentação dos quóruns em linhas gerais da seguinte forma:

1496324a.jpg

Quotas sem direito a voto

Feitas essas ponderações a respeito do cenário pretérito, corrente e potencial da parametrização dos quóruns, não se pode descurar de sua conexão com outros aspectos relevantes para sua operacionalização.

Um desses aspectos se refere à admissibilidade de quotas sem direito de voto. A discussão doutrinária sobre as variáveis da desigualdade das quotas no artigo 1.055 do Código Civil — se referente exclusivamente ao valor nominal ou mesmo em relação aos direitos patrimoniais ou, ainda, aos direitos políticos, especialmente com a regência supletiva da Lei 6.404/76 — alimentava incertezas sobre a emissão de quotas com prerrogativas diferenciadas e a possibilidade de existência de quotas sem direito de voto. Apesar de não existir vedação legal à sua admissão, consolidou-se a prática de emitirem-se exclusivamente quotas com direito a voto. Atualmente, a questão seria menos suscetível de impugnação no registro do comércio a partir da publicação da Instrução Normativa DREI 81/2020, que expressamente admitiu a emissão de quotas preferenciais.

Movendo o foco da supressão para a multiplicação do direito de voto, a Lei 14.195/21 derrubou o paradigma de "uma ação, um voto" para, ao alterar a Lei 6.404/76, admitir a criação de classes de ações ordinárias com voto plural em companhias fechadas ou abertas. Nessa conjuntura, estas agora podem emitir ações ordinárias com até 10 (dez) votos por ação, viabilizando-se alternativas de sua capitalização por terceiros e preservando-se ainda assim o poder de controle com os fundadores, em linha com legislações estrangeiras avançadas.

Em que pese esse progresso, teme-se que a diversidade e complexidade das condições impostas à nova figura — como a necessidade de prorrogação em até sete anos por assembleia geral (na qual não podem votar os titulares daquelas ações), as variadas hipóteses de conversão automática em ações ordinárias sem voto plural, os diversos casos de impedimento de uso do dispositivo, sua aplicação exclusivamente nas deliberações em que o texto legal regule o quórum pelo número de votos e não pelo número de ações votantes, o direito de retirada dos acionistas dissidentes, e sua admissão em companhias abertas somente antes do início da negociação de quaisquer ações ou valores mobiliários em mercado organizado — possam comprometer sua efetiva adoção na prática. Sem prejuízo, a conclusão possível é que, a exemplo da destituição de voto, sua pluralidade poderia ser, a princípio, factível em quotas de sociedades limitadas cujos contratos sociais adotem a Lei 6.404/76 por regência supletiva.

Exposto este cenário, vale destacar que não foi alterada a metodologia do Código Civil de computarem-se os votos nas sociedades limitadas com base na proporção de cada participação no capital social. O parâmetro de cômputo de votos adotado pela Lei 10.406/02 — tal como verificado nos artigos 1.085, 1.076, 1.074, 1.063 e 1.061 — mede-se pelo capital social, em contraposição à quantidade de ações com direito de voto da original Lei 6.404/76 ou, após o advento da Lei 14.195/21, à quantidade de votos conferidos pelas ações com direito a voto.

Daí se ponderar que, em face da admissão de quotas preferenciais sem direito a voto e de quotas com voto plural, o cômputo dos votos deveria considerar não somente a aritmética objetivamente adotada nas sociedades anônimas, mas também sopesar o capital social representativo, fazendo-se os ajustes necessários. Nesse contexto, a respeito das quotas preferenciais, o item 5.3.1 do Anexo IV da IN DREI 81/20 elucida que "consideram-se apenas as quotas com direito a voto, para os efeitos de cálculo dos quóruns de deliberação e instalação das reuniões que dizem respeito à sociedade".

E a respeito das quotas com voto plural, o § 9º do novo artigo 110-A da Lei 6.404/76 prevê que, "quando a lei expressamente indicar quóruns com base em percentual de ações ou do capital social, sem menção ao número de votos conferidos pelas ações, o cálculo respectivo deverá desconsiderar a pluralidade de voto". Neste aspecto, a aplicação desta figura por analogia às sociedades limitadas demandaria uma construção interpretativa, que deveria passar por elucidações em sede de contrato social e acordo de sócios, já que o Código Civil não faz essa abordagem trazida pela Lei 14.195/21. Talvez a iniciativa da reforma possa levar isso em consideração.

De se observar, por fim, que a intenção de sintetizar a matéria replica o racional do anteprojeto de Código Comercial formulado por Fábio Ulhoa Coelho, cuja minuta — ao se situar em posição intermediária entre a situação corrente e aquela prevista no anteprojeto de reforma do Código Civil — dispõe em seu artigo 616 que "salvo disposição em contrário no contrato social, qualquer cláusula pode ser alterada por vontade de sócios titulares de mais da metade do capital social"; e quanto às demais matérias, acaba não regulando o quórum de deliberação no título próprio das sociedades limitadas, fazendo remissão, por meio do artigo 604, à aplicação das normas relativas à sociedade anônima fechada, cujo artigo 412 dispõe que "as deliberações da assembleia geral, ressalvadas as exceções previstas em lei, serão tomadas por maioria absoluta de votos, não se computando os votos em branco".

Feitas tais colocações, este cenário tenderia a sugerir que a estruturação da governança de sociedades limitadas neste interregno se atente às alterações recentes e também às modificações potenciais da matéria, seja para definir com maior precisão em contrato social e/ou acordo de sócios os números/percentuais dos quóruns aplicáveis, fazendo-os prevalecer de forma atemporal, seja para deixar o sistema em aberto para simples aplicação da norma legal então vigente, sujeitando-o ao mover cambiante da legislação, da forma que for mais apropriada à organização em questão.

Footnotes

1 COELHO, Fábio Ulhoa. A sociedade limitada no novo código civil. São Paulo: Saraiva, 2003. pp.84-85.

2 Agravo de Instrumento nº 2134449-55.2023.8.26.0000. a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo. Julgado e publicado em 07 de agosto de 2023. Aparentemente em sentido contrário, a mesma 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, ao julgar o Agravo de Instrumento nº 2169094-09.2023.8.26.0000 em 31 de janeiro de 2024, entendeu prevalecerem os quóruns reduzidos pela Lei 14.451/22, por serem cogentes, em detrimentos daqueles expressamente previstos no contrato social.

3 Algumas alterações foram feitas ao longo do tempo como pela Lei 13.792/19.

Originally published by Conjur news portal

The content of this article is intended to provide a general guide to the subject matter. Specialist advice should be sought about your specific circumstances.

Mondaq uses cookies on this website. By using our website you agree to our use of cookies as set out in our Privacy Policy.

Learn More