A 3ª Turma do STJ recentemente decidiu, no Recurso Especial 1.735.6681, que o rol de legitimados para requerer o levantamento de curatela (previsto no artigo 756, parágrafo 1º do CPC) não é taxativo. Tal conclusão já era defendida por parcela da doutrina e não é propriamente uma surpresa. O que surpreendeu foi o último fundamento empregado pelo STJ para alcançar a conclusão: a interpretação de que a literalidade do artigo 756, parágrafo 1º do CPC levaria à conclusão de que o rol de legitimados não é taxativo.

Tal dispositivo legal afirma que “[o] pedido de levantamento da curatela poderá ser feito pelo interdito, pelo curador ou pelo Ministério Público e será apensado aos autos da interdição”. Ao analisar a literalidade do texto legal, o STJ afirmou, no último parágrafo da decisão, que:

Na realidade, é possível afirmar que a razão de existir do art. 756, §1º, do CPC/15, até mesmo pelo uso pelo legislador do verbo “poderá”, é de, a um só tempo, enunciar ao intérprete quais as pessoas têm a faculdade  de ajuizar a ação de levantamento da curatela, garantindo-se ao interdito a possibilidade de recuperação de sua autonomia quando não mais houver causa que justifique a interdição, sem, contudo, excluir a possibilidade de que essa ação venha a ser ajuizada por pessoas que, a despeito de não mencionadas pelo legislador, possuem relação jurídica com o interdito e, consequentemente, possuem legitimidade para pleitear o levantamento da curatela. (grifei)

Portanto, depreende-se da fundamentação do acórdão que, como o artigo 756, parágrafo 1º do CPC utiliza a conjugação “poderá”, a sua literalidade permite que pessoas não listadas por ele também possam requerer o levantamento da curatela. Isto é, segundo o STJ, como o CPC não utilizou a expressão “somente poderá”, a literalidade do artigo 756, parágrafo 1º não impõe taxatividade. Seria como se, em outras palavras, em vez de “constituir uma prerrogativa legal” em benefício das pessoas às quais se refere, a conjugação “poderá” estivesse sendo utilizado pelo CPC como uma mera “declaração” de uma condição jurídica que ele não seria de qualquer maneira responsável por criar ou regular.

Igualmente importante, ao afirmar que essa conclusão estava diretamente ancorada no “uso pelo legislador do verbo ‘poderá’”, o STJ sugere que essa sua interpretação de “poderá” deve ser estendida para todas as outras situações em que ele for empregado de forma idêntica.

Por se tratar de uma interpretação do significado e dos efeitos decorrentes do uso de “poderá” (conjugação de um verbo muito utilizado na redação de leis, contratos e sentenças), esse fundamento empregado pelo STJ não pode ser menosprezado ou diminuído em sua importância; ao utilizá-lo, a 3ª Turma tocou num ponto de extrema relevância para a segurança do ordenamento jurídico como um todo.

Por exemplo, o próprio CPC utiliza a conjugação “poderá” um total de 260 vezes, e é fácil encontrar alguns exemplos em que tal verbo é utilizado de forma idêntica à utilizada no artigo 756, parágrafo 1º. Para ficarmos em apenas um, vejamos o que dispõe o artigo 119 do CPC:

Art. 119: Pendendo causa entre 2 (duas) ou mais pessoas, o terceiro juridicamente interessado em que a sentença seja favorável a uma delas poderá intervir no processo para assisti-la.

O artigo 119 contempla a tradicional regra de que o assistente deve ser um terceiro com “interesse jurídico” e não “meramente econômico” no resultado favorável da sentença a uma das partes. Contudo, se a mesma interpretação dada pelo STJ ao artigo 756, parágrafo 1º fosse aplicada ao artigo 119 do CPC, a conclusão seria de que o rol estabelecido pelo artigo 119 (composto de uma única pessoa, o “terceiro juridicamente interessado”) nãoseria necessariamente taxativo. Consequentemente, seria possível argumentar, pelo menos, que a literalidade do CPC não vedaria que outros agentes — terceiros com interesse meramente econômico, por exemplo — atuassem como assistentes.

É curioso notar que a doutrina citada pelo próprio precedente2 afirmou, textualmente, que o artigo 756, parágrafo 1º possui um rol taxativo. Nesse contexto, é possível que o fundamento aqui discutido tenha sido incluído na decisão justamente como meio de tentar afastar a eventual crítica de que a conclusão do julgado seria contra legem.

No entanto, ao assim proceder, a 3ª Turma, despretensiosamente, criou um precedente potencialmente perigoso para a estabilidade de diversas relações jurídicas. Não se está aqui criticando o resultado prático da decisão no caso (pois, realmente, há bons argumentos para que pessoas não listadas pelo artigo 756, parágrafo 1º possam pedir o levantamento da curatela), mas apenas apontando que o STJ deveria ser especialmente cuidadoso ao utilizar interpretações literais que vão contra o sentido normal das palavras (plain meaning, para usarmos um anglicismo), especialmente aquelas palavras largamente utilizadas em textos legais nos mais variados contextos. Seria excelente se a 3ª Turma pudesse retomar o tema em um novo caso para desenvolver melhor sua posição sobre o assunto e, assim, reduzir a insegurança criada.

Além disso, a decisão do STJ é um lembrete de que, mesmo anos após ser utilizada com um certo significado, não se pode excluir a possibilidade de alguém atribuir um novo significado a uma determinada expressão. Exatamente por isso, a busca por maior precisão, especialmente na redação de contratos, pode ser decisiva, seja na prevenção de controvérsias relacionadas à ambiguidade de contratos, seja na frustração da justa expectativa das partes por uma interpretação inesperada por quem está na posição de julgador. Nesse sentido, até uma eventual manifestação mais detalhada do STJ, a utilização e interpretação da conjugação “poderá” recomenda especial cautela.

Footnotes

1 STJ, Recurso Especial 1.735.668, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 11/12/2018, DJe em 14/12/2018.

2 O acórdão citou a seguinte passagem: “3. Legitimidade (art. 756, §1º, CPC/2015). O pedido de levantamento/modificação da curatela — ao menos de acordo com o texto legal — só poderá ser feito pelo interdito, pelo curador ou pelo Ministério Público. (...) (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2016. p. 1312)” (grifamos).

The content of this article is intended to provide a general guide to the subject matter. Specialist advice should be sought about your specific circumstances.