Em tramitação no Congresso há quase sete anos, a atualização do chamado Código Comercial — conjunto de normas que balizam as relações empresariais no país, como regras para contratos — pode ser votada nos próximos meses. A retomada das discussões colocou em alerta especialistas e parte do setor produtivo, que veem na medida fonte de aumento de insegurança jurídica. Embora a proposta original tenha sido adaptada nos últimos anos para reduzir um caráter considerado intervencionista, persiste o temor de que a introdução de uma nova legislação crie mais burocracia para os negócios, em vez de diminuir as incertezas nos negócios, como prometem os autores do texto.

Dois projetos de lei tratam do tema: um na Câmara dos Deputados e outro no Senado. O texto da Câmara é o mais antigo, apresentado em junho de 2011, quando foi duramente criticado por conter trechos polêmicos, como a previsão de que o Ministério Público possa anular um contrato social por falta de cumprimento da "função social", conceito vago, na avaliação de especialistas. A redação foi retirada pelo relator da matéria, deputado Paes Landim (PTB-PI), que apresentou seu substitutivo em 2016. O parlamentar prepara uma terceira versão do texto, incorporando as sugestões.

- O mercado achou o projeto um pouco intervencionista. Vai-se corrigir ao máximo esse traço intervencionista do projeto e ver se a comissão e o mercado aceita - afirma Paes Landim.

EXPECTATIVA DE MIL EMENDAS

O texto do Senado, de 2013, tem a mesma essência, porém inclui novas regras de processo, ou seja, aquelas que definem como são tratados as disputas judiciais entre empresas. A matéria tem 1.103 artigos. A versão em discussão na Câmara tem 785. A tramitação no Senado corre por fora.

Segundo o relator, senador Pedro Chaves (PSC-MS), a expectativa é de votar o projeto até junho. Na prática, os dois projetos devem se tornar um só, quando e se uma das casas legislativas concluir o processo de votação.

- Vamos analisar quais são os questionamentos das federações. Óbvio que ele não vai ter unanimidade - afirma Chaves, que prevê que o texto deve receber pelo menos mil propostas de emendas.

Hoje, as regras empresariais são regidas principalmente pelo Código Civil, a Lei das Sociedades Anônimas e a Lei de Falências. O país até tem um Código Comercial ainda em vigor, mas o texto é de 1850. A maior parte dele foi revogada pelo Código Civil, de 2002, que dedica pelo menos 229 artigos ao direito empresarial. Trechos do texto quase bicentenário, no entanto, estão valendo até hoje, exclusivamente para a regulação do comércio marítimo. A lei faz referência, por exemplo, a embarcações que "verdadeiramente pertencem a súditos do Império".

Na prática, a ideia dos projetos apresentados no Congresso é atualizar toda essa legislação em uma só lei. Para isso, ora repete trechos inteiros do Código Civil, como o que determina o que fazer em caso de morte de um dos sócios, ora prevê mudanças em outras leis. O projeto da Câmara acrescenta um capítulo inteiro à Lei de Falências, de 2005, sobre "falências transnacionais", que tratam das regras para cobrança de dívidas em caso de credores internacionais. Exige, por exemplo, que as comunicações sejam feitas em português ou traduzidas.

Para Gisela Gadelha, gerente geral do departamento jurídico do Sistema Firjan, há uma discussão sobre a necessidade de um Código Comercial, independentemente do teor da lei.

- Uma proposta de um novo código comercial, ainda que seja aprimorado, conta com problema de concepção. É preciso saber se é necessário um código comercial. Os defensores dizem que esse código viria para melhorar o ambiente empresarial no Brasil. A gente entende que a crise exige reformas muito mais estruturantes do que um simples código. Não vai melhorar o ambiente de negócios e pode gerar insegurança jurídica.

Independentemente do conteúdo, as simples mudanças desnecessárias precisam de um certo período de transição para que a sociedade, advogados e magistrados possam incorporar essas mudanças — afirma Gisela.

O advogado Francisco Müssnich, fundador do escritório BMA - Barbosa, Müssnich e Aragão e especialista em direito societário, considera que faltou transparência na discussão do assunto com a sociedade. E afirma que o texto, que considera "obscuro", pode causar confusão.

- (O projeto) nunca foi discutido com a sociedade. Tem coisas repetitivas, absolutamente sem sentido, sem reflexão, mexendo com coisas que são constituídas há anos — diz Müssnich.

Assim como a Firjan, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) é crítica ao projeto. Nos últimos dois anos, a entidade fez sugestões de alterações, que foram parcialmente atendidas. Não consta mais do relatório, por exemplo, a previsão da figura do facilitador, um auxiliar do juiz que ajudaria em processos considerados complexos ou volumosos. A possibilidade de que um sócio com mais de 5% de participação da empresa requeresse à Justiça a presença de um fiscal temporário na companhia também foi extinta.

Agora, a Fiesp aguarda novas adaptações do relator da matéria. "Em várias reuniões, a Fiesp expôs sugestões que espera sejam contempladas para que um novo Código Comercial melhore o ambiente de negócio para a indústria, que vem tentando se recuperar da crise, gerar empregos e se manter competitiva no cenário mundial", informou a entidade em nota enviada ao GLOBO.

IMPACTO BILIONÁRIO DA MUDANÇA

Já a Confederação Nacional do Comércio (CNC) é a favor do projeto. Um dos vice-presidentes da entidade, o deputado Laércio Oliveira (SD-SE) é o presidente da comissão especial que analisa o assunto na Câmara. Segundo ele, o projeto vai desburocratizar o ambiente de negócios no país.

Entre os pontos positivos, cita o estabelecimento de regras para o comércio eletrônico. Um dos artigos, por exemplo, determina que os sites das empresas devem ter links para os termos de uso e para a política de privacidade da loja. Também traz regras sobre a posse dos domínios na internet.

- Estamos construindo um código que trata dessas relações, das novas atividades que tratam das novas rotinas. Antes, não existia nada sobre esse assunto — afirma Oliveira.

A visão é compartilhada pelo presidente do Conselho de Direito da Fecomercio-SP, Ives Gandra Martins.

- Achamos que vai ser um novo marco de inserção daquilo que está no Código Civil, trazendo o Brasil de 1975 para 2018 — afirma, em referência ao ano em que o Código Civil começou a ser elaborado.

O advogado Fábio Ulhoa, especialista em direito comercial e autor de trabalhos que inspiraram a proposta, destaca que o Código é necessário porque a legislação atual não contempla as relações entre empresas. O especialista é membro das comissões de juristas que elaboram e analisam o projeto na Câmara e no Senado.

- Juntar todas as relações civis como empresariais num único código está errado — afirma o especialista, em referência ao Código Civil. — Não se trata do mesmo jeito um contrato de locação de um apartamento com o de uma compra de uma siderúrgica. Por exemplo, temos um instituto no direito civil que é chamado lesão. Quando um universitário vai alugar um apartamento e é explorado pelo senhorio, ele merece proteção porque é inexperiente.

Agora, entre dois empresários, o código trata das relações entre duas empresas. Se ele (empresário) contrata mal, ele que lide com as consequências. Se aplicarmos esse instituto da lesão para resolver problemas de contrato civil a um mega acordo de acionistas ou financiamento de projeto de infraestrutura, se chega a uma solução inapropriada porque os empresários podem alegar que não tinham experiência para contratar. Isso ocorre entre franqueados e franqueadores, por exemplo.

Outra linha de raciocínio defende que o ambiente de negócios seja aprimorado, mas não por meio de códigos.

- Não se tem mais exemplos contemporâneos de código comercial. A tendência é regulação de certos setores. Essa ideia é do século XIX, uma a visão de que o Direito poderia em um código tratar de tudo. A própria ideia de um código nasce completamente morta — defende Nelson Eizirik, advogado e professor de Direito da Fundação Getulio Vargas.

Já Luciano Timm, advogado e ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE) defende uma visão pragmática: a relação custo-benefício da criação da lei. Em 2014, estudo do Insper com base na versão original do projeto, estimou que as despesas adicionais das empresas para se adaptar à lei poderiam ultrapassar R$ 180 bilhões. Embora o número possa ter mudado com as alterações no texto, o especialista destaca que toda mudança deve levar esse custo em consideração.

- Nenhum dos dois projetos fez uma análise de custo do impacto que teria. Toda mudança de legislação acaba permitindo com que partes entrem na Justiça para testar interpretação dos tribunais de conteúdo das normas. Como esse código aposta no modelo principiológico (baseado em princípios mais gerais), que tem muita margem de interpretação, isso acaba gerando muita demanda judicial. A jurisprudência demora, na nossa experiência, dez anos para consolidar. Mais importante que mudar o código é especializar os juízes. Se os juízes tiverem especialização em matéria comercial, a tendência é que eles profiram decisões mais alinhadas às regras do mercado — afirma Timm.

Enquanto isso, resta a preocupação sobre a entrada em vigor de uma lei que precisa de mais discussão. Cássio Cavalli, sócio do Veirano Advogados, observa que a discussão merece mais tempo de amadurecimento:

- Não sei se a gente tem maturidade nessa discussão suficiente para encaminhar para votação. Talvez tenha que aprofundar, e não descobrir isso (se o código é ou não benéfico) com uma lei vigente, porque lida com a própria economia.

The content of this article is intended to provide a general guide to the subject matter. Specialist advice should be sought about your specific circumstances.