Está aberto o Edital de Consulta Pública 55/2017 do Banco Central (BC), sobre a constituição e o funcionamento das fintechs de crédito, como são conhecidas as empresas que empregam intensivamente tecnologia com o objetivo de prestar serviços financeiros de oferta de crédito. A tão aguardada resolução procura trazer mais agilidade, eficiência e independência para essas empresas, com redução de seus custos operacionais e potencial aumento da concorrência no sistema financeiro.

A minuta de resolução cria duas figuras que dependerão de autorização do BC para operar: a Sociedade de Crédito Direto (SCD) e a Sociedade de Empréstimo entre Pessoas (SEP). A primeira é definida como instituição financeira que realiza empréstimos a partir de capital próprio e exclusivamente por meio de plataforma eletrônica. A segunda é instituição financeira voltada à realização de empréstimos entre pessoas também por meio de plataforma eletrônica. A SEP é uma intermediadora de empréstimos entre credores e devedores, ou como são chamadas essas operações: peer to peer lending.

A primeira questão que se coloca é se essas novas sociedades são mesmo instituições financeiras, como foram designadas pela minuta de resolução.

O artigo 17 da Lei n°4.595, de 31 de dezembro de 1964, considera instituições financeiras "as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros." Como se vê, a instituição financeira define-se pela prática de atividades privativas.

A definição legal de instituições financeiras é demasiado ampla: sua interpretação literal poderia levar a resultados absurdos. Por exemplo, todas as empresas que aplicam no mercado financeiro os recursos obtidos a partir de suas atividades como forma de se protegerem contra perda de valor de seu capital de giro (ou seja, quase todas as empresas brasileiras) estariam praticando atividades privativas de instituições financeiras e precisariam de autorização para operar.

Por essa razão, a doutrina tem conferido interpretações mais restritivas ao texto legal. Entende-se que a caracterização de instituição financeira exige cumulativamente (i) a captação de recursos de terceiros em nome próprio, (ii) seguida de repasse financeiro através de operação de mútuo, (iii) com o intuito de auferir lucro derivado da maior remuneração dos recursos repassados em relação aos recursos coletados, (iv) desde que a captação seguida de repasse se realize em caráter habitual.1 Em outras palavras, a caracterização da atividade privativa de instituição financeira depende da ocorrência concomitante de três operações: captação, intermediação e aplicação.2

Essa interpretação faz sentido, inclusive sob o aspecto da proteção da poupança popular. A mera aplicação de recursos não captados de terceiros não põe em risco as economias do público e, portanto, não deve ser tida como atividade privativa.3 Aliás, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a presença de recursos de terceiros como essencial à caracterização de instituição financeira4 e firmou entendimento no sentido de que empresas de factoring não são instituições financeiras justamente por não efetuarem operação de mútuo ou captação de recursos de terceiros.5

Voltando ao caso da SCD, essa só poderá utilizar capital próprio, sendo-lhe vedado captar recursos do público. Ou seja, essas sociedades só podem conceder empréstimos com capital dos próprios acionistas. Ainda que essas empresas integrem o Sistema Financeiro Nacional (SFN) e dependam de autorização do BC, não há exercício de atividade privativa de instituição financeira. Logo, a SCD não é uma instituição financeira propriamente dita.

Já a SEP funda-se em uma estrutura mais robusta. Apenas entidades integrantes do SFN podem emprestar a taxas de juros superiores aos limites da Lei da Usura (Decreto nº 22.626, de 7 abril de 1933).6 Para contornar essa limitação e permitir que empréstimos entre credores e devedores pela plataforma eletrônica da SEP possam ter seus encargos livremente pactuados, a proposta de resolução lança mão de uma estrutura em que o empréstimo é concedido pela própria SEP, no lugar do credor investidor: (i) o credor disponibiliza recursos à sociedade; (ii) o instrumento representativo do empréstimo tomado pelo devedor é emitido pela SEP ou em favor dela; (iii) o instrumento é imediatamente cedido ou endossado ao credor final; (iv) os recursos são finalmente transferidos ao devedor. A SEP poderá cobrar tarifas por essa operação e pelos serviços assessórios prestados.

A estrutura pode não ser a forma mais convencional de ofertar créditos, mas atende aos requisitos da atividade privativa de instituição financeira, uma vez que está presente a captação de recursos de terceiros (os credores investidores), seguida de repasse aos devedores por meio de empréstimos financeiros, ambos em nome da SEP.

Essas conclusões têm impacto prático imediato. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) veda a instalação no país de instituições financeiras com participação de capital estrangeiro e o aumento da participação estrangeira das que já aqui operam, exceto em caso de decreto presidencial atestando interesse do Governo Brasileiro ou autorizações resultantes de acordos internacionais. É essencial saber se essa limitação é aplicável às SEPs e SCDs, uma vez que várias fintechs de crédito em operação no país ou interessadas em aqui se instalar possuem participação estrangeira. A autorização presidencial depende de disposição política e pode demorar anos para ser expedida.

Ocorre que a restrição constitucional incide apenas sobre instituições financeiras. Como a SCD não é instituição financeira propriamente dita, não requer autorização presidencial. A SEP com participação estrangeira, por sua vez, terá de obter (além da autorização do BC) autorização da Presidência da República.

Porém, fintechs já estão atuando no Brasil e o tempo de espera por novas autorizações pode ser prejudicial a suas atividades. Hoje, elas geralmente agem como correspondentes bancários, sempre em parceria com uma instituição financeira que formaliza as operações de crédito originadas pelas plataformas digitais. A estrutura atual é mais complexa, pois exige um banco parceiro e envolve um feixe de contratos e de operações mais denso. É possível afirmar que hoje as fintechs de crédito estão "dando uma volta muito grande, juntando pedaços de regras criadas"7 para só assim viabilizar seu negócio.

Por outro lado, a estrutura existente é lícita e pode continuar a ser utilizada por essas plataformas. Isso ocorrerá caso essas fintechs entendam que os custos e o tempo que terão que dispender para conseguir autorização do BC e da Presidência (quando aplicável) são muito elevados e não compensam os esforços. Além de que essas fintechs terão que observar um conjunto maior de regras enquanto entidades reguladas do que enquanto meros correspondentes bancários. É possível que a estrutura atual, com uma "volta maior", não seja descartada por alguns, pelo menos em um primeiro momento. Afinal, nem sempre a menor distância entre dois pontos é uma reta.

Seguindo uma tendência do mercado internacional, a minuta de resolução procurou inovar ao permitir que fundos de investimento brasileiros e estrangeiros sejam controladores de SEPs ou SCDs. Assim, além de pessoas jurídicas e naturais, também as entidades despersonalizadas (como são os fundos brasileiros e parte dos fundos estrangeiros) poderiam deter o controle dessas sociedades. Isso as faz diferentes, por exemplo, de bancos e sociedades de crédito, que só podem ser controlados diretamente por pessoas naturais ou holdings financeiras.

Porém, conforme observado, o ADCT vedou a instalação no país de instituições financeiras com participação de capital estrangeiro. Por se tratar de norma constitucional, requer emenda constitucional para que seja alterada (o que envolve, dentre outros requisitos, aprovação de três quintos dos membros de cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos). Assim, a permissão regulatória a que fundos estrangeiros controlem uma SEP não elimina a necessidade de posterior autorização do Executivo atestando interesse do Governo, a qual só poderia ser dispensada por meio de uma emenda constitucional. A SCD, por sua vez, não é instituição financeira e foge ao âmbito de aplicação da restrição do ADCT. No caso da SCD, além de fundos estrangeiros, a norma poderia tornar mais claro que pessoas naturais, entidades despersonalizadas e também outras pessoas jurídicas estrangeiras que não apenas as holdings financeiras podem deter seu controle.

Outra constatação é a redução de garantias aos empréstimos obtidos por intermédio das plataformas eletrônicas. Na estrutura comumente adotada pelas fintechs de crédito atualmente, o investidor empresta recursos para a instituição financeira parceira, que emite recibos de depósito bancário (RDBs), representativos do depósito feito pelo investidor.8 Os RDBs são garantidos pelo Fundo Garantidor de Créditos (FGC) até o limite de R$250 mil. Na estrutura proposta pela nova norma, por outro lado, as captações efetuadas por uma SEP não terão cobertura do FGC, pois essa proteção é restrita às instituições associadas ao fundo e que contribuem mensalmente para o mesmo.

Além disso, fica vedado à SEP coobrigar-se ou prestar qualquer tipo de garantia nas operações de empréstimo que intermediar. As garantias podem ser oferecidas pelos devedores aos credores, mas não pela sociedade de empréstimos, que também não poderá expor-se por meio de fundo de investimento ao risco de crédito das operações. Essa vedação reduz a segurança dos credores. Hoje, para atrair investidores, algumas fintechs de crédito têm optado pela criação de um fundo de investimentos em direitos creditórios, cujas cotas seniores são transferidas aos credores em troca da disponibilização de recursos e cujas cotas subordinadas ficam com a própria fintech. Como o cotista da classe subordinada só recebe o pagamento pelo resgate ou amortização de suas cotas depois do cotista senior, a estrutura funciona como forma de garantia adicional aos credores do fundo.

A estrutura dos empréstimos via SEP, como descrita acima, passa pela cessão ou endosso de instrumentos representativos do empréstimo aos credores. Isso não deveria representar qualquer empecilho às operações; porém, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) determinou recentemente a redução dos juros, da correção monetária e dos demais encargos cobrados com base em Cédula de Crédito Bancário (CCB) em razão da cessão do crédito a entidade não financeira.

O Código Civil prevê expressamente que a cessão de um crédito abrange todos os seus acessórios (como juros e correção monetária), a não ser que o instrumento de cessão disponha de outra forma. Porém, o TJ-SP entendeu que os juros acima da Lei de Usura não poderiam ser cedidos a entidades não financeiras, pois apenas entidades integrantes do SFN poderiam ser titulares de tais direitos como originalmente contratados. O posicionamento do STJ não deve vir desta vez, pois o credor juntou petição de desistência antes do julgamento do recurso que havia interposto ao STJ.

Prevalecendo o entendimento do TJ-SP, a cessão de créditos a credor não integrante do SFN exigiria uma logística complexa para a cobrança dos juros. Para evitar o enriquecimento sem causa do devedor, caberia ao cessionário o direito de cobrar principal e encargos até o limite da Lei da Usura e ao cedente, cobrar a diferença entre estes e os pactuados na Cédula. A tarefa é ainda mais complexa diante das hesitações jurisprudenciais sobre qual a taxa máxima aceita pela Lei da Usura: 12% ao ano, taxa Selic, ou o dobro da Selic. Outro problema é que a SEP não conseguirá eliminar integralmente os créditos cedidos de seu balanço.9 Apesar de o edital de consulta pública apresentar a segurança jurídica como um dos motivos da proposta de resolução, não há como descartar a possibilidade de outras decisões judiciais nesse sentido, impondo obstáculos à satisfação do crédito dos investidores em eventual processo judicial e, é claro, desconfigurando o modelo de SEP.

O edital está disponível no site do BC e as sugestões serão recebidas até 17 de novembro de 2017.

Footnotes

1  Eduardo Salomão Neto, Direito Bancário, 2ª edição, São Paulo, 2014, p. 29.

2  A jurisprudência administrativa do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, apesar de crítica à amplitude desmensurada da definição legal de atividade privativa de instituição financeira, tem adotado interpretação mais literal do texto normativo, segundo a qual não é necessária cumulatividade entre as atividades de captação, intermediação e aplicação. Nesse sentido: Recurso CRSFN 13789, Relatora Adriana Cristina Dullius Britto, julgado em 8 de fevereiro de 2017; e Recurso CRSFN 5783, relator Bolivar Tarragó Moura Neto, julgado em 29 de março de 2005; Recurso CRSFN 12972, relator José Augusto Mattos da Gama, julgado em 28 de abril de 2015.

3  Acórdão de 9 de agosto de 1971 no Habeas Corpus nº 2.555 – Espírito Santo, Relator Ministro Godoy da Ilha, 2ª Turma do Tribunal Federal de Recursos.

4  CC 31072 – Rio de Janeiro, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, 18 de fevereiro de 2002.

5  Por exemplo: Recurso Especial nº 938.979 – Distrito Federal (2007/0075055-2), Relator Ministro Luis Felipe Salomão, 19 de junho de 2012.

6  Súmula 596 do Supremo Tribunal Federal (STF) e artigo 591 do Código Civil.

7  Marcelo Ciampolini (Diretor da Lendico no Brasil): Fintechs de Crédito e BC: mais um passo para mudar o mercado de crédito no Brasil.

8  As operações de empréstimo realizadas pelos devedores são formalizadas mediante a emissão de CCBs pela instituição financeira parceira em favor dos devedores. Essas CCBs são vinculadas aos RDBs (que foram emitidos aos investidores) por meio de operações ativas vinculadas (regidas pela Resolução nº 2.921, de 17 de janeiro de 2002). Assim, o crédito tomado pelo devedor é vinculado ao investimento. O investimento ficará atrelado ao pagamento do empréstimo formalizado mediante CCB.

9  Luiz Roberto de Assis e Fernando de Azevedo Peraçoli. O Poder Judiciário e a cessão de créditos bancários.

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